O que é nosso vem ter connosco!


Meados dos anos noventa. 96, 97... não me lembro bem. Sei que graffitis no Algarve era coisa que não se via. Acho que ainda não se tinha sentido um tag por lá. Eu, o Zé Rui (OBEY) e o Gonçalo Boavida (SHOT) decidimos que estava na altura de alargar horizontes e apanhámos o comboio para Lagos. O dinheiro que tínhamos chegava para o bilhete e não sobravam trocos mas o que interessava era ir. "Ninguém vai com dinheiro e a gente safa-se", sempre foi a nossa política e nunca faltaram graffs por causa disso.

Saímos a meio da tarde de Carcavelos. Anoitecia quando estávamos quase a chegar a Lagos. Decidimos dar uso às latas ainda dentro do comboio. A carruagem onde íamos começou, pouco a pouco, a ganhar outras cores com os nossos tags, perante o olhar embasbacado dos passageiros que não estavam habituados a ver estas demonstrações de arte em andamento. Não eram muitos os outros passageiros e mesmo assim havia um que estava a mais porque decidiu ir chamar o pica. O pica chegou e ficou a olhar sem dizer nada. Não estava propriamente encantado com o nosso talento mas achou que se calhar não tinha grande alma para enfrentar três entusiasmados de latas em punho Devíamos ter mesmo ar de que ninguém nos ia fazer parar! Ele não disse nada e nós continuámos a pintar até forrarmos toda a carruagem. Percebemos que ele mandou informar a polícia (naquele tempo não havia telemóveis mas telefones para a central dos comboios).

Quase a chegar a Lagos, latas dentro da mochila, estava na hora de voar antes de chegar à estação. Os comboios, na altura, tinham menos segurança e dava para abrir as portas em andamento. Atravessamos várias carruagens para chegarmos ao fim do comboio e despistar o pica. Abrimos a porta, inclinamos o corpo para acompanhar o balanço do comboio e saltamos para a linha uns cinquenta metros antes de chegar à estação. ao longe, iluminados pelos candeeiros, estavam os bófias à espera. Assim que nos vimos no chão achamos que bom mesmo era correr para o lado oposto e corremos, no meio da linha, até dar. salta redes, cruza ruas, corre sem olhar para trás. só paramos no meio de Lagos. Eram mais que horas de jantar e havia que pensar num plano para nos orientarmos porque aquela corrida tinha aberto o apetite e a noite ia ser longa... Havia muita carruagem para estrear!

O OBEY tinha uma chave mestra daquelas máquinas de vender coca-colas porque era responsável por uma máquina dessas da associação de estudantes da escola. A chave não abria todas as máquinas mas havia muitas que cediam aos seus encantos. Achamos uma máquina que se deixou abrir. Levamos coca-colas e cervejas com fartura. montamos banca no largo e vendemos coca-colas enquanto bebíamos as jolas. Deu na boa para o jantar dos três e para uns chocolates para o turno da noite.

À uma e tal da manhã chegamos ao Yard. uma hora para rondar o espaço, descobrir o chefe da estação e escolher o spot. Duas e tal o cheiro da tinta já estalava no ar. misturado com o ar quente daquela noite de verão. A cor e as letras cresciam naquelas carruagens que sempre tinham sido cinzentas e os seguranças, nada habituados a estas intervençoes nocturnas , dormiam em paz. Às quatro sentimos um perigo e desrtamos para uma pausa. Assim que voltamos a sentir o silêncio, regressamos e terminamos as peças. Passava das quatro. Ainda tínhamos duas horas para arrochar algures até o dia nascer. Seis da manhã lá estávamos nós, prontos para bater a grande foto. Mas não éramos só nós. À nossa frente tinha chegado a esquadra de Lagos inteira e eram eles os fotógrafos. O som dos flashes deles não eram de orgulho mas de indignação. Não sabiam bem como reagir àquele terrorismo colorido.

Voltamos frustrados sem a merecida foto mas, como o que é nosso vem ter connosco, quando cheguei a Lisboa tinha um recado do meu advogado a pedir para ir ao escritório dele com urgência. Assim que lá cheguei só me disse: "Olha o que eu recebi! Assim não posso continuar a defender-te!" E mostou-me a grande foto, bem tirada, que os bófias amigos tinham mandado do nosso primeiro comboio algarvio.

Por: Nomen

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